Fotografia: Gonçalo Afonso Dias, S. Pedro do estoril, 08/2012
Esta é a segunda fotografia que aqui publico deste senhor – o Sr. João
Na primeira reportei essencialmente a situação deste homem atirado para a rua – A Rua do Murtal - onde trabalho todos os dias em S. Pedro do Estoril, e a minha revolta perante a indiferença atroz da nossa sociedade com estas pessoas.
Nesta imagem fotográfica o foco está nas mãos do João, deixando num plano menos focado a sua cara, a sua identidade. As mãos cruzadas sobre o peito numa gesto de resignação, de desistência.
Da janela do meu atelier vejo-o todos os dias, a todas as horas. Vejo as pessoas a passarem no passeio desabrigado que ele adoptou como “casa, a passarem por ele sem olhar, como se deu saco de lixo se tratasse. Outras param mas não é para olhar para ele… observam atentamente uma pequena obra que ali está a ser feita a dois passos…
Ontem enquanto almoçava no restaurante que referi no resumo da primeira fotografia que lhe fiz não consegui desviar o olhar deste homem com cara de fome e de morte.
Não consegui comer e desabafei com o meu parceiro de almoço – Já viste? Estamos aqui a comer e à nossa frente está um homem que já não sabe o que isso é há muito tempo.
O calor era muito. A roupa que ele veste – a única que tem – é quente, é de inverno…
Dia após dia tenho tentado a aproximação, sempre difícil, a este senhor com a intenção de conseguir falar com ele, de perceber o que ele sente e como o poderei ajudar.
Saí do restaurante e deixei o prato como me foi servido… Comprei na mercearia do Armando uma garrafa de água para o tentar hidratar já que o sol e o álcool o estavam a secar.
Cheguei-me a ele. Chamei-o pelo nome. Abriu os olhos numa expressão de espanto mas de medo também. Molhei-lhe a cabeça como se faz a uma criança. Despertou.
Ao mesmo tempo passava um sujeito que aparentemente sabia quem ele era e que exclamou – “Com água ainda o mata! Dê-lhe vinho que é o que ele quer !”.
Respondi-lhe com a dureza que se impunha e principiei a falar com o Sr. João.
Perguntei-lhe se se sentia bem, disse-lhe que não podia ficar ali ao sol, que isso o podia matar.
Foi acordando aos poucos, ao ritmo das minhas palavras. Pediu-me um cigarro e disse-me que tinha fome. O meu companheiro e meu colaborador que estava comigo foi comprar uma sandes de fiambre à mercearia. Comeu-a devagar e acedeu ao meu pedido de ir dando pequenos goles de água – pequenos porque aquele estômago vazio não suportaria mais do que isso.
Depois falou… Mesmo empasteladas pelo vinho as palavras que disse eram de um homem com um vocabulário desenvolvido, as frases bem construídas, os verbos nos tempos correctos. Um homem que leu, que estudou, que reflectiu sobre a vida antes de se cansar dela.
Perguntou-me o que queria… Quero ajudar-te, disse-lhe. Mas para isso tens de me deixar ajudar. Falou em Deus, com fé, como se fosse (e é a sua derradeira fuga). Enquanto falávamos pedia-me cigarros que eu negociava com pequenos goles de água.
Perguntei-lhe a idade. Começou a chorar…
52 anos, apenas mais 4 do que eu.
- Chora João, faz bem – eu também choro, não é vergonha nenhuma.
Falou da guerra, falou dos filhos… Falou dos amigos que já não tinha…
Agora tens, disse-lhe já emocionado. Amanhã quero ver-te um bocadinho melhor, pedi-lhe.
O tempo passou, as pessoas também, indiferentes mas admiradas por me verem sentado ao lado dele.
Um homem na condição do João não se consegue ajudar com bens, com roupas ou dinheiro.
Apenas a palavra, a persistência, a atenção que não tem, podem levá-lo a ganhar forças para levantar a cabeça e seguir em frente. Assim o espero.