Nada de novo, isso acontece a todos.
Um desses momentos, talvez o mais significativo, passou-se há muitos anos, na antiga E.S.B.A.P.
Frequentava então o primeiro ano do Curso de Arquitectura.
Quando acabei o 12º ano fui “parar” ao Porto. Não consegui nota para entrar na Faculdade de Lisboa. Por pouco. Mas assim foi.
Os meus pais, nesses tempos, também não tinham “nota” para me alugar um espaço exclusivo, com a privacidade e com o conforto que desejavam.
Reparti, por isso, (com mais 2 de outras áreas) um quarto alugado, na casa da Dona Elvira, numa rua de má fama no centro do Porto – A famosa Rua do Sol.
As regras da casa eram implacáveis e a senhoria exercia o seu poder com “mão de ferro”; 3 duches por semana numa casa de banho encavalitada numa “hesitante” varanda, com a particularidade de ter a água aquecida por um estranho aparelho eléctrico colocado à saída do chuveiro que frequentemente “dava choques”…
Isto também pouco interessa…ou talvez não.
Na primeira aula de História de Arquitectura, no anfiteatro da escola, o Professor Fernando Távora falou, entre outros assuntos, de arquitectura e de arquitectos.
A certa altura ironizou (…) Só se chega a arquitecto depois dos 40 anos.(…)
Fiquei em pânico, tinha para aí 21…
Se na altura, a afirmação do Mestre foi por mim entendida como um “aviso à navegação”, hoje, preste a fazer 43, continua a ser uma “bóia sinalizadora” na minha navegação profissional e sobretudo pessoal.
Maturidade. Foi aquilo que Távora quis que ficasse registado nas nossas impacientes cabecinhas. Tão simples quanto isso.
Na minha interpretação, primeiro uma maturidade como pessoa, para chegar, mais tarde, à maturidade enquanto arquitecto.
Estou também convencido que o saudoso Távora “largou o 40” como poderia ter dito 50, 60, ou …
Essa Maturidade, é “casada” com a Humildade. E não se separam. Nunca.
Esta “lenga-lenga” só serve para introduzir uma das primeiras obras que projectei há mais de uma década (A casa de Santiago do Cacém, e só hoje, passado tanto tempo, poderia (d) escrevê-la com o necessário distanciamento.
O contexto é simples e relativamente comum: A filha mais nova de um casal já idoso, enraizado em Santiago do Cacém, convenceu o pai que era fundamental contratar um arquitecto para conduzir os destinos da centenária casa de família, na iminência do colapso.
De entre todos os familiares, essa filha era a única “com estudos”, licenciada e tudo.
Para uma família tradicional, com origem no campo e na terra, esse estatuto fazia toda a diferença e conferia uma maior autoridade à sua opinião nesses assuntos mais "periféricos".
E foi assim que fui contratado para a reconstrução do velho edifício.
Ficou desde logo assente que as estruturas em madeira apodrecida não comportavam obras de remodelação e que seria mais sensato e económico “deitar tudo abaixo”, excepto a fachada – Património Municipal (e as empenas) e construir de raiz.
Aos donos da casa, tanto fazia… Viviam assim há longos anos e o que desejavam era “deixar alguma coisa para os dois filhos”.
Foi a base do programa para esta obra: Conservar a fachada, remodelar o restaurante e a loja do Rés-do-chão e fazer duas casas novas no primeiro andar (Uma para a filha e outra para o filho) idênticas, independentes, tirando o maior proveito possível do enorme terreno nas traseiras, ao nível desse piso, orientado para Poente.
As casas tinham um programa corrente, arrumado de forma a relacionar a sala e a cozinha com o pátio traseiro e os quartos para o lado da rua.
No piso superior propunha uma sala polivalente com uma casa de banho privada que tanto serviria para os hóspedes como para as brincadeiras dos netos.
Esses espaços comunicavam e estendiam-se para um grande terraço.
O desenho dos volumes simétricos do terraço (uma escada exterior faz a ligação ao piso de baixo e garante a privacidade no primeiro andar) surgiu com o rebatimento da linha que define a inclinação do telhado original, dando , de certo modo, a desejada unidade ao conjunto.
A estrutura de ensombramento em vigas de betão protege a violência do Poente alentejano e caracterizam esses expressivos volumes.
Mais tarde completarei este post com os desenhos do projecto e outros elementos que eventualmente for encontrando.
Agora, pouca diferença fazem, para “a história que vos quero contar”, tentando sintetiza-la o melhor possível.
Logo nas primeiras (e muito breves conversas) com o meu cliente (O pai assumia naturalmente esse papel) percebi que não me fazia perceber… A minha conversa de jovem arquitecto era demasiado agressiva e arrogante para alguém que “só queria uma planta”.
Pouco adiantaram as maquetas e outras “tretas” que eu achava que “lhe davam a volta”.
O velho senhor que infelizmente “já cá não está” ia dizendo que sim… e que também.
O projecto foi aprovado depois de passar pelos costumeiros enredos burocráticos.
Seguiu-se o projecto de execução. Centenas de pormenores, medições, orçamentos e Cadernos de Encargos.
Finalmente o D.O. escolheu um empreiteiro de confiança lá da terra. Seguiu-se a demolição e a ancoragem da fachada, posteriormente “agrafada” à nova estrutura de betão armado.
As pessoas do sítio iam acompanhando o crescimento do estranho objecto com muitas reservas que não escondiam ao meu cliente.
Com o “esqueleto” em pé, depois de acabada a estrutura e as alvenarias, eu estava feliz e muito satisfeito com a forma que a obra ia ganhando.
Os problemas surgiram quando o meu cliente se apercebeu de todo aquele “espaço desperdiçado” com os “inúteis” terraços do primeiro andar. "Davam umas boas divisões"...
Contudo, a ruptura aconteceu mais tarde, quando, ao visitar os primeiros acabamentos, me apercebi que todos os materiais tinham sido escolhidos e comprados “a gosto”na loja de um velho amigo. Nada do que constava no Mapa de Acabamentos e restantes peças do projecto.
A pedra das zonas húmidas dera lugar a um mosaico espanhol (40x40); A “pastilha” da cozinha foi suprimida e trocada por uns decorativos azulejos adornados com motivos vários.
E os detalhes na escala 1:1?! “Conta-me outra anedota…”! Claro que, num contexto já duro, onde as relações estavam fragilizadas, nem existiam em obra.
A bela guarda metálica da escada interior para o piso dos quartos (arrancando duma zona de pé direito duplo da sala) que tantos esquissos proporcionaram, foi transformada numa nobre e segura balaustrada em madeira escura.
Aquelas “alhetas” que separam os tectos das paredes foram recriadas numas sancas de esferovite, muito mais fáceis de executar. A delicada estereotomia em pedra de relativa dimensão que revestiria o pátio “abstractizou-se” na tão tradicional “sopa de pedras”. Até gosto...
A “gota de água” caíu quando o Patriarca da Família, já farto da minha “conversa de arquitecto” e das minhas constantes ameaças (retirar o Termo de Responsabilidade, embargar a obra, etc.) chamou à minha “relíquia”, em plena rua e rodeado dos atentos vizinhos, de “Mamarracho”. Assim mesmo! Toma e embrulha…
Eu tomei e embrulhei. Meti-me no carro e fiz a sinuosa estrada nacional até à A2 a chiar os pneus e a espumar de raiva. Tinha sido humilhado! Eu, que tanto trabalhei… Não era justo.
Passaram-se muitos anos sem que eu lá passasse. A minha amiga, constrangida, pouco me dizia sobre a casa.
Em Janeiro de 2005, digeridos todos os ensinamentos possíveis desta história e relativizadas as “mágoas de arquitecto ferido no orgulho” decidi ir conhecer esse meu “filho” e tentar perceber até que ponto a sua “conturbada infância”, pela separação litigiosa dos pais, o tinha verdadeiramente afectado.
Estacionado o carro à porta da casa, enchi-me de coragem, e toquei na campaínha.
Entrei, visitei demoradamente todos os espaços e, talvez pela primeira vez, ri-me com gosto de mim próprio. Pedi inclusivamente à minha companheira, também arquitecta, que me fotografasse, em plena escada da balaustrada, a encenar um desgraçado agarrado à cabeça. Enquanto isso, a dona da casa, com o seu avental aos quadradinhos ia fazendo a limpeza e ateando a lareira.
Depois segui viagem.
Desta vez em paz. A lição foi aprendida. Fiquei a gostar muito desse "meu filho".
Moral da história: A que cada um entender. Para mim, a necessária aprendizagem e as “dores do crescimento”…
Doem mas fazem muito bem.
E se houvesse “razão” nestas coisas, não estava do meu lado. Com certeza.
2 comments:
olá Gonçalo
Cá venho eu fazer uma visita ao teu blog.
Falo contigo neste projecto pq gostei bastante do efeito conseguido com as sombras... mas normalmente fico sempre bastante tempo no blog pq tens coisas bestiais e interessantes para ver...
olha o Edgar está a trabalhar contigo?!! Se sim manda-lhe um forte abraço
Um grande abraço para ti também
Zé Silvestre
a posta "cresceu" e ainda bem...
life goes on...
falta pachora para a falta de humildade da "classe"
abaixo as primas-donas
"não são génios lo que necessitamos agora" (coderch, de memória...)
um testemunho divertido
e como disse o nobre silvestre a proposito do efeito das sombras nem tudo se perdeu
um abraço
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